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Família desencontrada - Mario Quintana

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O Verão é um senhor gordo, sentado na varanda,
suando em bicas e reclamando cerveja.

O Outono é um tio solteirão que mora lá em cima
no sótão e a toda hora protesta aos gritos: “Que barulho é este na escada?!”

O Inverno é o vovozinho trêmulo, com a boina enterrada
até os olhos, a manta enrolada nos queixos e
sempre resmungando: “Eu não passo deste agosto,
eu não passo deste agosto...”

A Primavera, em contrapartida
- é ela quem salva a honra da família! –
é uma menininha pulando na corda cabelos ao vento
pulando e cantando debaixo da chuva
curtindo o frescor da chuva que desce do céu
e cheiro de terra que sobe do chão
o tapa do vento cara molhada!

Oh! a alegria do vento desgrenhando as árvores
revirando os pobres guarda-chuvas
erguendo saias!
A alegria da chuva a cantar nas vidraças
sob as vaias do vento...

Enquanto
- desafiando o vento, a chuva, desafiando tudo –
no meio da praça a menininha canta
a alegria da vida
a alegria da vida!
                                          Mario Quintana.

A Palavra Mágica

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A Palavra Mágica
Certa palavra dorme na sombra 
de um livro raro. 
Como desencantá-la? 
É a senha da vida 
a senha do mundo. 
Vou procurá-la. 

Vou procurá-la a vida inteira 
no mundo todo. 
Se tarda o encontro, se não a encontro, 
não desanimo, 
procuro sempre. 

Procuro sempre, e minha procura 
ficará sendo 
minha palavra. 

Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'





PALAVRAS - (Adriana Falcão)

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PALAVRAS

As gramáticas classificam as palavras em substantivo, adjetivo, verbo, advérbio, conjunção, pronome, numeral, artigo e preposição.
Os poetas classificam as palavras pela alma porque gostam de brincar com elas e pra brincar com elas é preciso ter intimidade primeiro.
É a alma da palavra que define, explica, ofende ou elogia, se coloca entre o significante e o significado pra dizer o que quer dar sentimento às coisas, fazer sentido.
Nada é mais fúnebre que a palavra fúnebre.
Nada é mais amarelo do que o amarelo-palavra.
Nada é mais concreto do que as letras c.o.n.c.r.e.t.o, dispostas nessa ordem e ditas dessa forma, assim, concreto, e já se disse tudo, pois as palavras agem, sentem e falam por elas próprias.
A palavra nuvem, chove.
A palavra triste, chora.
A palavra sono, dorme.
A palavra tempo, passa.
A palavra fogo, queima.
A palavra faca, corta.
A palavra carro, corre.
A palavra palavra, diz o que quer. E nunca desdiz depois.
As palavras têm corpo e alma, mas são diferentes das pessoas em vários pontos. As palavras dizem o que querem, está dito, e ponto.
As palavras são sinceras, as segundas intenções são sempre das pessoas.
A palavra juro não mente.
A palavra mando não rouba.
A palavra cor não destoa.
A palavra sou não vira casaca.
A palavra liberdade não se prende.
A palavra amor não se acaba.
A palavra ideia não muda. Palavras nunca mudam de ideia.
Palavras sempre sabem o que querem.
Quero não será desisto.
Sim nunca jamais será não.
Árvore não será madeira.
Lagarta não será borboleta.
Felicidade não será traição.
Tesão nunca será amizade.
Sexta-feira não vira Sábado nem depois da meia-noite.
Noite nunca vai ser manhã.
Um não serão dois em tempo algum.
Dois não serão solidão.
Dor não será constantemente.
Semente nunca será flor.
As palavras também tem raízes, mas não se parecem com plantas, a não ser algumas delas: verde, caule, folha, gota.
As células das palavras são as letras. Algumas são mais importantes que outras.
As consoantes são um tanto insolentes. Roubam as vogais pra construírem sílabas e obrigam a língua a dançar dentro da boca. A boca abre ou fecha quando a vogal manda.
As palavras fechadas nem sempre são mais tímidas. A palavra sem-vergonha está aí de prova.
Prova é uma palavra difícil.
Porta é uma palavra que fecha.
Janela é uma palavra que abre.
Entreaberto é uma palavra que vaza.
Vigésimo é uma palavra bem alta.
Carinho é uma palavra que falta.
Miséria é uma palavra que sobra.
A palavra óculos é séria.
Cambalhota é uma palavra engraçada.
A palavra lágrima é triste.
A palavra catástrofe é trágica.
A palavra súbito é rápida.
Demoradamente é uma palavra lenta.
Espelho é uma palavra prata.
Ótimo é uma palavra ótima.
Queijo é uma palavra rato.
Rato é uma palavra rua.
Existem palavras frias como mármore.
Existem palavras quentes como sangue.
Existem palavras mangue, caranguejo.
Existem palavras lusas, Alentejo.
Existem palavras itálicas, ciao.
Existem palavras grandes, anticonstitucional.
Existem palavras pequenas: microscópio, minúsculo, molécula, partícula, quinhão, grão, covardia.
Existem palavras dia: feijoada, praia, boné, guarda-sol.
Existem palavras bonitas: madrugada.
Existem palavras complicadas: enigma, trigonometria, adolescente, casal.
Existem palavras mágicas: shazam, abracadabra, pirlimpimpim, sim e não.
Existem palavras que dispensam imagens: nunca, vazio, nada, escuridão.
Existem palavras sozinhas: eu, um, apenas, sertão.
Existem palavras plurais: mais, muito, coletivo, milhão.pa
Existem palavras que são palavrão.
Existem palavras pesadas: chumbo, elefante, tonelada.
Existem palavras doces: goiabada, marshmallow, quindim, bombom.
Existem palavras que andam: automóvel.
Existem palavras imóveis: montanha.
Existem palavras cariocas: Corcovado.
Existem palavras completas: elas todas.






Toda a palavra tem a cara do seu significado. A palavra pela palavra, tirando o seu significado fica estranha. Palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra não diz nada, é só letra e som.

(Adriana Falcão) 

Dia 19 de Março - Dia do Artesão

Dia 19 de Março - Dia do Artesão
Minha poesia é inglória, vive em bancas incertas.
Do pódio e das vitórias, traduz histórias discretas.
Nos dizeres, incontida, minha poesia é de lua, às vezes, reza vestida às vezes, discursa nua.
Meu poema é artesanato.
E sai-me pronto das mãos.
Coso-o, com muito cuidado, cirzo-o, sem distração.
Às vezes, vem das sucatas de contas e velhos botões, de renda e fitas baratas, da fieira dos piões.
Que ressona atrás da porta, tem os pêlos de um cão, no final das linhas tortas traz pena, paina, algodão. Tem cores das violetas, pose de pedra-sabão.
Nas asas da borboleta, nem coloca os pés no chão.
O poema-artesanato traz ponto-cruz, bordaduras.
É sempre um simples retrato de uma notória figura. Retirado da net.


São José Carpinteiro.

São José Carpinteiro.